O Acampamento Indígena Revolucionário (AIR): a Guerra dos Tamoios Contemporânea, Parte IV - A Resistência


A "Batalha do Congresso", no dia 19 de maio de 2010, foi o divisor de águas para o AIR...............
Por Marília Lima


Podemos caracterizar a luta dos indígenas acampados com um forte componente de espontaneidade, demonstrando essa ligação histórica entre a Confederação dos Tamoios e a luta do AIR, pois é através dos rituais indígenas que se realizava o enfrentamento. Um exemplo memorável da espontaneidade da luta indígena foi o confronto ocorrido dentro da Câmara dos Deputados, no dia 19 de maio de 2010. Os indígenas acampados foram avisados que iria ser votada a aprovação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), conselho este presidido pelo Presidente da FUNAI, Márcio Meira, alvo da indignação dos acampados - pois uma das principais reivindicações dos indígenas era a saída imediata do Presidente da FUNAI. Ao serem informados da votação do CNPI, cerca de duzentos e cinqüenta indígenas entraram na Câmara dos Deputados e realizaram um impressionante toré. Ao tentarem entrar no Salão Verde da Câmara dos Deputados, local onde seria a votação do CNPI, foram barrados pela Polícia Legislativa que ali se encontrava. Houve empurra-empurra e a polícia começou a desferir golpes de cassetete e choques elétricos indiscriminadamente. Os indígenas revidaram como puderam. Por conta desse embate, houve muita repercussão na mídia e, a partir desse confronto, a manifestação dos indígenas se tornaria conhecida no país inteiro. Para os acampados, esse dia ficou conhecido como “A Batalha do Congresso”.
Ademais da sua repercussão na imprensa, “A Batalha do Congresso” levou os indígenas a serem imediatamente atendidos pelo Presidente da Câmara dos Deputados, o deputado Marco Maia. Uma comissão de lideranças indígenas exigiu que o CNPI não fosse aprovado. Houve várias discussões com os deputados ali presentes e, por fim, o objetivo de não aprovar o CNPI, naquele dia, foi alcançado. Fato esse que fez com que os manifestantes se unissem ainda mais e aumentasse a moral coletiva dos indígenas.
Outra questão fundamental a ser estudada é o da multiplicidade das lideranças indígenas. Afinal, quem era o líder máximo do AIR? Obtemos nessa simples pergunta uma associação com a Confederação dos Tamoios, já que houve vários líderes da Confederação e nenhum disponha de privilégios. O mesmo acontecia no AIR, onde havia várias lideranças de diversas etnias e todos tinham poder de voz e de ação. Talvez fosse um raro exemplo de “democracia direta”, que existe há milênios nas sociedades indígenas. As decisões de ações conjuntas, por exemplo, muitas vezes eram decididas à noite e em volta das fogueiras, com a possibilidade de participação de todos que ali se encontravam presentes. Inclusive a nomeação do Dr. Arão da Providência foi uma escolha dos próprios indígenas.
Tudo caminhava para o atendimento das reivindicações do Acampamento Indígena Revolucionário, pois, a cada dia, os acampados contavam com mais apoio e cada vez mais a luta dos indígenas era noticiada pelo Brasil inteiro. Porém, a FUNAI não estava disposta a atender nenhuma reivindicação e jogou como fez na primeira ocupação da FUNAI, em janeiro de 2010: negociando com cada etnia em separado e oferecendo “recompensas” em dinheiro. Quase um mês depois da “Batalha do Congresso”, que, apesar de ter deixado vários manifestantes feridos foi uma “luta” vencida pelo AIR, a FUNAI, em conluio com o Ministério da Justiça e, inclusive, com um representante da Presidência da República, ofereceram acordos individuais para algumas lideranças do AIR. Assim, o Acampamento Indígena Revolucionário foi dividido, porém, até então, estava unido em uma luta em comum. Havia um convívio relativamente bem entre as diversas etnias (mesmo não havendo uma unicidade, havia uma busca por alianças para o fortalecimento das suas reivindicações em comum – como ocorreu na histórica Confederação dos Tamoios). Assim, armaram outra armadilha para uma parte das lideranças indígenas e fizeram o que o Ministério da Justiça, a FUNAI e, por fim, a Presidência da República almejavam. Parte dos acampados, então, aceitou um acordo com o Ministério da Justiça e foi dormir em hotéis de Brasília. Carlos Pankararu (líder e fundador do Acampamento Indígena Revolucionário) declarou em carta aberta no blog do AIR, no mesmo dia da traição, 12 de junho de 2010, que o acordo seria uma cilada, pois não é da alçada do Ministro da Justiça revogar um decreto presidencial.
Nessa mesma manhã de sábado o próprio representante da FUNAI foi o principal articulador e corruptor para dividir o Acampamento Indígena Revolucionário e fazer com que parte dos indígenas aceitasse essa armadilha, saísse do acampamento e fosse para hotéis em Brasília. Junto com o Diretor de Proteção ao Desenvolvimento Sustentável da FUNAI, estava o representante da Presidência da República, além de assessores do Ministério da Justiça.
Mesmo com a saída de parte do AIR para hotéis, o acampamento continuou resistindo. Por ser um local público e espaço ideal para a manifestação, a FUNAI não podia retirar à força os indígenas da Esplanada dos Ministérios. Os manifestantes indígenas, ao escolherem acampar na frente dos prédios ministeriais de Brasília, tornaram-se um “problema” para a FUNAI, pois o órgão, ao invés de atender as reivindicações dos acampados, procurava uma maneira jurídica de expulsá-los do local. Assim, houve várias tentativas de retirar os indígenas, culminando naquela que seria a mais violenta: a mega-operação policial de 10 de julho de 2010. Como não há lei que proíba cidadãos protestarem em espaço público, uma liminar obtida pelo Governo do Distrito Federal, na sexta Vara Federal da Seção judiciária do Distrito Federal, com a conivência tanto do Ministério da Justiça como da FUNAI, afirmava que os indígenas estavam utilizando o local como moradia, já que o acampamento estava completando seis meses de vida. Portanto, na manhã do dia 10 de julho, foram retirados os pertences de cerca de cinqüenta indígenas, em uma grande operação policial, que, fechou o Eixo Monumental, e terminou com a prisão arbitrária de quatro pessoas, sendo dois indígenas.
Porém, com a retirada forçada dos seus pertences e das barracas, essenciais para a proteção contra o frio (as madrugadas de Brasília em julho chegam a ser gélidas) os indígenas decidiram continuar acampando, mesmo ao relento. Para resistir ao frio de Brasília, foram disponibilizados sacos de dormir para os indígenas e a resistência continuou por ainda um mês. Os indígenas eram vigiados por duas viaturas da polícia militar durante vinte e quatro horas, em uma clara tentativa de intimidação.
Depois de retiradas as barracas de lonas e, inclusive, os banheiros químicos, a situação higiênica do acampamento ficou precária. O acampamento se tornou alvo de escárnio de humorista e matérias de jornal, por conta da dificuldade que era realizar suas necessidades fisiológicas. A intimidação policial era para que, em hipótese alguma, os indígenas retornassem a colocar barracas de lona.
Uma semana depois da mega-operação policial foi noticiado que os indígenas cobraram R$ 563.000,00 (quinhentos e sessenta e três mil reais) da Presidência da República, do Ministério da Justiça e da própria FUNAI, por “gastos com protestos”, indicando uma clara traição ao movimento indígena e afirmando que as assinaturas dos indígenas eram de “líderes”. Ainda na matéria citada, havia uma justificativa para a mega-operação policial de 10 de julho contra os indígenas, já que as tentativas de “saída espontânea” dos acampados haviam fracassado. Como Aparelho Ideológico de Estado, a mídia fazia o seu papel de encobrir, mentir e mascarar a realidade, já que desviava a atenção do quão absurdo era a retirada violenta de barracas de lona e de pertences dos indígenas e, além do mais, ignorava que os indígenas tinham o direito de protestar e se manifestar contra o Decreto 7.056/09. Que saída espontânea poderia haver, se nenhuma reivindicação havia sido atendida durante seis meses de luta e indignação?
Noticiado no próprio blog do Acampamento Indígena Revolucionário havia, sim, uma tentativa de corromper as lideranças do AIR. Em uma carta escrita e assinada pela assessoria de imprensa do acampamento, o AIR acusava como corruptores: um representante direto da Presidência da República, o Diretor de Proteção ao Desenvolvimento Sustentável da FUNAI, e membros do Ministério da Justiça. Estavam, então, envolvidos nas negociações com os indígenas os órgãos vitais para a defesa dos direitos indígenas. Assim, a própria Presidência da República, junto ao Ministério da Justiça e da FUNAI eram os principais “inimigos” dos direitos dos indígenas. Depois de um mês de resistência, sem ter tido nenhuma reivindicação atendida e com o Congresso Nacional em recesso parlamentar, os últimos indígenas se retiraram da Esplanada dos Ministérios.
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O Acampamento Indígena Revolucionário (AIR): a Guerra dos Tamoios Contemporânea, Parte III, A participação dos Tenetehara - Guajajara


A participação das famílias Tenetehara-Guajajara foi fundamental para o AIR (foto de Bruno Costa)

O Acampamento Indígena Revolucionário, Parte III
A participação dos Tenetehara - Guajajara
Por Marília Lima

Por que os Tenetehara - Guajajara participaram de forma massiva e intensa do Acampamento Indígena Revolucionário? Sabemos que a história dos Tenetehara - Guajajara é de resistência a colonização, culminando no levante de João Caboré, o Kawiré Imàn, líder do histórico Massacre de Alto Alegre, ocorrido em 1901, na cidade de Barra do Corda, no estado do Maranhão. O líder dessa resistência indígena, o célebre Kawiré Imàn, é uma lembrança corrente dos Tenetehara - Guajajara. O pensar e fazer política dessa etnia pode ser visualizado pelas suas freqüentes e justas manifestações, em que o Acampamento Indígena Revolucionário é apenas mais um exemplo de protesto desses indígenas. Inclusive, a última manifestação dos Tenetehara – Guajajara não ocorreu em Brasília, no Acampamento Indígena Revolucionário, e sim no Maranhão, por conta da falta de repasse de fundos educacionais para os indígenas, fato que os levou a fechar a BR - 226, em novembro de 2010.
Portanto, podemos perceber a História dos Tenetehara-Guajajara na sua forma de atuação no Acampamento Indígena Revolucionário e pelas suas lideranças. Muitas das lideranças do AIR já eram antigas, outras eram descendentes de líderes históricos, como o Dr. Arão da Providência Filho, que alega ser descendente direto (bisneto) de João Caboré, o líder do Massacre de Alto Alegre.
Ademais da rebelião de 1901, os Tenetehara – Guajajara lutaram também para a demarcação das suas terras a partir da década de 1970. Como a demarcação de terras indígenas envolve, quase sempre, conflitos, são desses conflitos que surgiram as lideranças que fizeram parte do Acampamento Indígena Revolucionário.
As lideranças do AIR foram responsáveis por pressionar tanto a Câmara dos Deputados como o Senado Federal para a realização de audiências públicas acerca do Decreto 7.056/09. A primeira audiência pública realizada se deu na Câmara dos Deputados, no dia 28 de abril de 2010, e houve duas audiências públicas no Senado Federal, nos dias 5 de maio e 12 de maio. Na última audiência pública no Senado Federal foi proposta o Conselho Nacional de Direitos Indígenas (CNDI), como contraponto ao Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), este presidido pelo Presidente da FUNAI, Márcio Meira. O CNDI foi formado e formulado pelas lideranças indígenas que se encontravam presentes e, para presidi-lo, foi nomeado o advogado Dr. Arão da Providência Filho. O diferencial desse Conselho (entre outros aspectos revelantes) em relação ao CNPI, seria a possibilidade histórica da ocupação de um presidente indígena para o mais alto cargo da FUNAI.
Na audiência pública no Senado Federal foi criado o projeto de lei do CNDI, pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, na data de 20 de maio de 2010. Segue abaixo a parte do projeto do CNDI que explica a participação do AIR na sua criação e a rejeição do CNPI como representante legal dos povos indígenas:

"Pela primeira vez a comunidade indígena representada pelos povos que desde a edição do decreto presidencial de número 7056 de 28 de dezembro de 2009, acampada na Esplanada dos Ministérios, após as audiências públicas de 28 de abril de 2010 na Câmara dos Deputados e 05 de maio de 2010 e 12 de maio de 2010 no Senado Federal, resolveram auxiliar os verdadeiros patriotas que defendem os povos indígenas e em votação histórica rejeitou na Câmara dos Deputados a criação de um ‘conselho de política indigenista’ que foi introduzido na Medida Provisória 472 de 2009."

Durante o acampamento, os indígenas do AIR acusavam o CNPI de estarem a favor do governo e de não fazerem absolutamente nada para reverter o grave quadro de genocídio indígena. Por conta dessa percepção, é que ocorreu a “Batalha do Congresso” no dia 19 de maio de 2010. Apesar dos indígenas que faziam parte do CNPI terem críticas da maneira de como o governo estava conduzindo a política indígena, eles não tomavam uma atitude e muitas vezes criticavam o Acampamento Indígena Revolucionário usando as mesmas palavras da FUNAI, ou seja, acusavam o AIR de não ter legitimidade e de não ter lideranças indígenas.
O fato é que a FUNAI alegava que ouvia as reivindicações dos indígenas do Brasil por conta da participação da bancada indígena do CNPI. Porém, nenhuma reivindicação da bancada indígena desse Conselho foi atendida e os indígenas resolveram sair do CNPI no dia 16 de junho de 2011, lançando um Manifesto em que se isentavam da participação e da cooperação sobre o Decreto 7.056/09. Cito apenas o segundo ponto da carta assinada pela bancada indígena do CNPI: “2º. Outras decisões de governo, como a reestruturação da Funai, foram encaminhadas sem o nosso consentimento, no entanto fomos acusados de ter sido co-responsáveis na sua aprovação e encaminhamento.”
Como presidente do Conselho Nacional de Direitos Indígenas, hoje CNDDI (Conselho nacional de Defesa dos Direitos Indígenas), o Dr. Arão da Providência Filho, o principal responsável e apoiador da participação dos Tenetehara – Guajajara no AIR, tornou-se candidato, pela escolha dos indígenas, para ser Presidente da FUNAI. O Dr. Arão da Providência Filho, um reconhecido advogado do Rio de Janeiro, é filho de Arão da Providência Araújo, indígena que teve certa importância em Barra do Corda (MA). De acordo com o antropólogo Mércio Gomes:

“(...) Desde fins da década de 1950 o SPI havia colocado como responsável por essas aldeias um descendente de Tenetehara, Arão da Providência Araújo, que ainda falava a língua, mas cuja família vivia em Barra do Corda, tendo sido seu pai criado no Instituto Indígena dos capuchinhos, entre 1897 e 1901, e se tornado músico, com o mérito de ter composto o hino da cidade. Arão ficou na Aldeia Lagoa Comprida por alguns anos, sendo substituído por volta de 1965, (...)” ( GOMES, 2002, p. 386)

Logo após a criação do CNDI, houve mais um fato importante: outra ocupação da FUNAI, em 26 de maio de 2010, e a nomeação pelos indígenas ali presentes do Dr. Arão da Providência como presidente indígena da FUNAI, em meio aos torés e rezas evangélicas. Com a participação de várias etnias presentes no auditório da FUNAI e, inclusive, com muitos funcionários apoiando a substituição do presidente Márcio Meira para o líder do Acampamento Indígena Revolucionário.
Apesar de inúmeras críticas como a de perda do foco principal, que era a revogação do Decreto 7.056/09, a nomeação de um indígena (ou descendente de indígena, dependendo do ponto de vista) para a Presidência da FUNAI foi noticiada, na época, com algum destaque na mídia. Mesmo que simbólico, os rituais na posse de um indígena para a FUNAI não foram em vão e obtiveram seu alcance litúrgico.
Porém, o Dr. Arão da Providência não foi nomeado para o cargo de presidente da FUNAI e os indígenas retornaram do prédio da FUNAI para o acampamento instalado há cinco meses na Esplanada dos Ministérios.
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O Acampamento Indígena Revolucionário (AIR): a Guerra dos Tamoios Contemporânea, Parte II O Ethos Indígena


O AIR no dia primeiro de junho de 2010: a menarca de uma jovem índia fez com que o acampamento continuasse na Esplanada dos Ministérios (foto de Bruno Costa)
O Acampamento Indígena Revolucionário (AIR): a Guerra dos Tamoios Contemporânea, Parte II
O Ethos indígena
Por Marília Lima

Mais do que pensar como foram realizadas as manifestações do Acampamento Indígena Revolucionário (suas táticas políticas de confrontação e rebeldia), é importante refletir também como as manifestações eram expressões das culturas indígenas ali presentes: seu entrelaçamento com as práticas espirituais e a sua ligação com o Sagrado. A política dos indígenas acampados, nesse sentido, ultrapassava as fronteiras da mera luta por uma reivindicação imediata e era também uma forma de diálogo com os seus antepassados ou ancestrais.
Portanto, os indígenas revoltosos do AIR não eram apenas manifestantes, eram guerreiros empenhados em uma luta que transpunha a simples reivindicação da anulação do Decreto 7.056/09. Os valores que guiavam esses manifestantes, em vários momentos do AIR, eram próprios do guerreiro: como o de suportar frio, fome e todas as formas de intempéries. O possível enfrentamento com policiais era o “teste de ferro” desses acampados. A ameaça de enfrentamento estava, quase sempre, presente e parte dos indígenas se preparavam tanto espiritualmente como materialmente (confecção de bordunas, flechas e pinturas de guerra) para um embate que representava uma luta disputada, naquele momento, por quinhentos e dez anos (no imaginário político e espiritual desses revoltosos).
Assim, as manifestações não eram apenas políticas, eram também rituais sagrados de guerra. A manifestação, geralmente, se dava por meio da dança sagrada de torés, por cantos xamânicos na língua indígena (o belo canto dos Tenetehara - Guajajara). Ou mesmo por rezas evangélicas, em uma rica reelaboração cultural da ancestralidade indígena.
As manifestações, desse modo, portavam uma ligação com o Sagrado e com os rituais ancestrais indígenas. O ponto alto do AIR talvez seja um belo e emocionante exemplo dessa conexão intrínseca entre o político e o sagrado: uma adolescente Tenetehara – Guajajara menstruou pela primeira vez no acampamento, ou seja, teve a sua menarca. Esse fato, além da inegável importância para a família da moça, obteve uma repercussão inesperada. O AIR havia sido notificado, no dia primeiro de junho, que deveria se afastar a menos de um quilômetro de distância do Ministério da Justiça, em Brasília, o que foi caracterizado como uma “armadilha” para os manifestantes, ou seja, uma justificativa para desmontar o acampamento. Os indígenas alegavam que não poderiam sair, porque a indígena adolescente havia menstruado e, de acordo, com a tradição Tenetehara – Guajajara, ela deveria ficar uma semana enclausurada e este local tornava-se, naquele momento, sagrado. Nesse caso, a juíza federal que havia expedido um mandado para a remoção dos manifestantes compreendeu e respeitou a tradição indígena e revogou a liminar que autorizava a remoção das famílias indígenas da Esplanada dos Ministérios, onde o AIR estava acampado. Portanto, mais do que um ato político de protesto, a luta do AIR teve fortes características étnicas, além de fortalecer, em alguns momentos, as culturas indígenas ali presentes. Sabemos que o ritual é a preservação e a atualização da cosmovisão indígena e, que, o exemplo citado logo acima, representa a tradicional Festa da Menina Moça, realizada ancestralmente todos os anos dentro cultura dos Tenetehara - Guajajara.
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A luta do Acampamento Indígena Revolucionário (AIR): a Guerra dos Tamoios Contemporânea


Ocupação da FUNAI em janeiro de 2010, gênese do que viria ser o Acampamento Indígena Revolucionário (foto tirada do blog http://ocupacaofunai.blogspot.com/)

A luta do Acampamento Indígena Revolucionário (AIR): a Guerra dos Tamoios Contemporânea.
Histórico de luta - parte 1
Por Marília Lima

O AIR foi um acampamento de manifestantes indígenas que ocorreu de janeiro a setembro de 2010, em Brasília. Essa manifestação foi intitulada de "Acampamento Indígena Revolucionário" ou, simplesmente, AIR. Um grupo de manifestantes indígenas se instalou na Esplanada dos Ministérios em 12 de janeiro de 2010, após a publicação do Decreto n° 7.056/09, elaborado pela direção da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e assinado pelo então Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva. O Decreto 7.056/09 ficou conhecido como “reestruturação da FUNAI”.
A indignação dos indígenas começou com a publicação desse decreto e, a partir daí, iniciou-se uma série de protestos do movimento indígena no Brasil inteiro (não necessariamente vinculados ao que se tornaria o AIR) e, que, exigiram a revogação do dito decreto e a exoneração e substituição imediata do Presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Márcio Meira. Os protestos vieram de indígenas de quase toda parte do território brasileiro e de diversas etnias. Durante uma semana, de 11 a 18 de janeiro de 2010, a sede da FUNAI, em Brasília, foi ocupada por cerca de mil indígenas de todo país, com a participação das seguintes etnias: Truká, Fulniô, Xukuru, Potiguara, Kambiwá, Pankará, Pankararu, Pankaru, Tupinambá, Kayapó, Xavante, povos do Xingu e Pataxó. Os indígenas foram retirados por força militar, em operação contando com contingentes da Polícia Federal, Força Nacional e Batalhão de Operações Especiais (BOPE).
Portanto, o mês de janeiro de 2010 foi um mês de protestos para os indígenas, revoltados com a publicação do citado decreto. Em janeiro de 2010, os Kaingang, os Guarani e Xeta protestaram, fechando ruas e queimando bonecos representando o então Presidente da República e o Presidente da FUNAI e lançando uma carta de manifesto e repúdio por não terem sido consultados antes da publicação do decreto, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ademais de protestarem nas ruas, os Kaingang, Guarani e Xeta ocuparam a sede da FUNAI em Londrina, no Paraná, no início de janeiro de 2010. Ainda em janeiro, os indígenas do Nordeste (Pankararu, Truká, entre outros) se reuniram em Recife para articular contra o decreto. Em 12 de janeiro de 2010, cerca de 600 indígenas de diversas etnias protestaram na frente do Ministério da Justiça contra a “reestruturação da FUNAI”. Em 27 de janeiro de 2010, os Pataxó e os Tupinambá protestaram contra o decreto, em Brasília. Em 28 de janeiro de 2010, os Kaingang, Guarani, e indígenas de Rondônia como Karitiana, Karipuna, Kassupá, Kaxarari e Salamãí protestaram tanto na frente da FUNAI como defronte ao Ministério da Justiça, em Brasília, exigindo a saída imediata do presidente da FUNAI e a revogação do decreto. Foram diversas manifestações no Brasil inteiro e já em março de 2011, cerca de trezentos e cinqüenta indígenas Terena, do estado do Mato-Grosso, fecharam a BR – 163, reivindicando a revogação do Decreto 7.056/09 e a demarcação de suas terras.
Com tantos protestos Brasil afora e partindo de inúmeras etnias, o movimento indígena brasileiro ficou em um impasse e foi lançada uma Nota sobre a Reestruturação da FUNAI, no dia 21 de janeiro de 2010, assinada pelas principais entidades do movimento indígena: Associação Nacional de Ação Indigenista - ANAI, Conselho Indigenista Missionário - CIMI, Centro de Trabalho Indigenista – CTI, Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo - APOINME
Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal e Região - ARPIPAN
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB. Porém, essa Nota não repudiava a “reestruturação” e, sim, afirmava que faltava um maior diálogo por parte da FUNAI e que esse órgão necessitava explicar melhor o que era o decreto para as lideranças indígenas, que, na opinião dessas entidades, não haviam compreendido a “reestruturação” da FUNAI. Para essas organizações, o Decreto 7.056/09 não tinha um maior impacto na vida dos indígenas, e faltava apenas uma hermenêutica explicativa, o que fazia com que o levante indígena perdesse o seu peso político – mais uma vez, os indígenas que protestavam não eram levados a sério. A FUNAI entendeu o recado dessas organizações e tratou de criar seminários explicativos em quase todos os estados brasileiros, com o intuito de esclarecer para as lideranças indígenas o que era a “reestruturação” da FUNAI.
A reestruturação da FUNAI também teve seus apoiadores nas organizações indígenas, e um deles foi o Conselho Indígena de Roraima (CIR), conselho esse ligado a COIAB,que, publicou uma Nota em apoio ao presidente da FUNAI no dia 21 de janeiro de 2010. Porém, é bom ressaltar que a área indígena Raposa Serra do Sol foi homologada de forma contínua no período do governo Luís Inácio Lula da Silva e, talvez, fosse esse o principal motivo para o CIR apoiar o decreto.
É significativa também a indignação e manifestação por parte dos funcionários da FUNAI, que foram prejudicados com a publicação do Decreto 7.056/09. As administrações regionais de Goiânia e de Pernambuco foram extintas e vários funcionários foram escalados para outros órgãos, causando muita revolta. Assim, junto com as manifestações feitas pelos indígenas, houve a participação de sindicatos de funcionários públicos.
Uma parte desses indígenas revoltosos, retirados a força da sede da FUNAI, em Brasília, foi acampar defronte ao Ministério da Justiça, na Esplanada dos Ministérios, sendo essa manifestação indígena multiétnica (contando, nessa altura, com as etnias Pankararu, Terena, Korubo, Fulniô, Munduruku, Krahô-Canela, Kaingang, Karipuna, entre outras). Posteriormente, houve uma participação massiva de cerca de trezentos indígenas da etnia Tenetehara – Guajajara, que, tiveram um papel essencial para a resistência do Acampamento Indígena Revolucionário. Além da veemente participação dos Xukuru, Xavante, Kayapó, Guarani Kaiwoa, Atikum, Tupinambá, entre outros.
No início do acampamento, não havia ainda uma nomeação para a manifestação desses indígenas (sequer os manifestantes tinham a pretensão de nomear o acampamento). De acordo com uma das líderes e fundadora do acampamento, Lúcia Munduruku, quem fez esse “favor” de denominar a manifestação foi a própria mídia corporativa, citando-o em um jornal impresso como o “Acampamento Indígena Revolucionário”. Os indígenas acolheram esse batizado e passaram, desde então, a designar o acampamento e seus manifestantes de “indígenas revolucionários”, em um contraponto aos indígenas que não queriam protestar contra o Decreto 7.056/09, ou mesmo contra a FUNAI.
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