O Acampamento Indígena Revolucionário (AIR): a Guerra dos Tamoios Contemporânea, Parte IV - A Resistência
A "Batalha do Congresso", no dia 19 de maio de 2010, foi o divisor de águas para o AIR...............
Por Marília Lima
Podemos caracterizar a luta dos indígenas acampados com um forte componente de espontaneidade, demonstrando essa ligação histórica entre a Confederação dos Tamoios e a luta do AIR, pois é através dos rituais indígenas que se realizava o enfrentamento. Um exemplo memorável da espontaneidade da luta indígena foi o confronto ocorrido dentro da Câmara dos Deputados, no dia 19 de maio de 2010. Os indígenas acampados foram avisados que iria ser votada a aprovação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), conselho este presidido pelo Presidente da FUNAI, Márcio Meira, alvo da indignação dos acampados - pois uma das principais reivindicações dos indígenas era a saída imediata do Presidente da FUNAI. Ao serem informados da votação do CNPI, cerca de duzentos e cinqüenta indígenas entraram na Câmara dos Deputados e realizaram um impressionante toré. Ao tentarem entrar no Salão Verde da Câmara dos Deputados, local onde seria a votação do CNPI, foram barrados pela Polícia Legislativa que ali se encontrava. Houve empurra-empurra e a polícia começou a desferir golpes de cassetete e choques elétricos indiscriminadamente. Os indígenas revidaram como puderam. Por conta desse embate, houve muita repercussão na mídia e, a partir desse confronto, a manifestação dos indígenas se tornaria conhecida no país inteiro. Para os acampados, esse dia ficou conhecido como “A Batalha do Congresso”.
Ademais da sua repercussão na imprensa, “A Batalha do Congresso” levou os indígenas a serem imediatamente atendidos pelo Presidente da Câmara dos Deputados, o deputado Marco Maia. Uma comissão de lideranças indígenas exigiu que o CNPI não fosse aprovado. Houve várias discussões com os deputados ali presentes e, por fim, o objetivo de não aprovar o CNPI, naquele dia, foi alcançado. Fato esse que fez com que os manifestantes se unissem ainda mais e aumentasse a moral coletiva dos indígenas.
Outra questão fundamental a ser estudada é o da multiplicidade das lideranças indígenas. Afinal, quem era o líder máximo do AIR? Obtemos nessa simples pergunta uma associação com a Confederação dos Tamoios, já que houve vários líderes da Confederação e nenhum disponha de privilégios. O mesmo acontecia no AIR, onde havia várias lideranças de diversas etnias e todos tinham poder de voz e de ação. Talvez fosse um raro exemplo de “democracia direta”, que existe há milênios nas sociedades indígenas. As decisões de ações conjuntas, por exemplo, muitas vezes eram decididas à noite e em volta das fogueiras, com a possibilidade de participação de todos que ali se encontravam presentes. Inclusive a nomeação do Dr. Arão da Providência foi uma escolha dos próprios indígenas.
Tudo caminhava para o atendimento das reivindicações do Acampamento Indígena Revolucionário, pois, a cada dia, os acampados contavam com mais apoio e cada vez mais a luta dos indígenas era noticiada pelo Brasil inteiro. Porém, a FUNAI não estava disposta a atender nenhuma reivindicação e jogou como fez na primeira ocupação da FUNAI, em janeiro de 2010: negociando com cada etnia em separado e oferecendo “recompensas” em dinheiro. Quase um mês depois da “Batalha do Congresso”, que, apesar de ter deixado vários manifestantes feridos foi uma “luta” vencida pelo AIR, a FUNAI, em conluio com o Ministério da Justiça e, inclusive, com um representante da Presidência da República, ofereceram acordos individuais para algumas lideranças do AIR. Assim, o Acampamento Indígena Revolucionário foi dividido, porém, até então, estava unido em uma luta em comum. Havia um convívio relativamente bem entre as diversas etnias (mesmo não havendo uma unicidade, havia uma busca por alianças para o fortalecimento das suas reivindicações em comum – como ocorreu na histórica Confederação dos Tamoios). Assim, armaram outra armadilha para uma parte das lideranças indígenas e fizeram o que o Ministério da Justiça, a FUNAI e, por fim, a Presidência da República almejavam. Parte dos acampados, então, aceitou um acordo com o Ministério da Justiça e foi dormir em hotéis de Brasília. Carlos Pankararu (líder e fundador do Acampamento Indígena Revolucionário) declarou em carta aberta no blog do AIR, no mesmo dia da traição, 12 de junho de 2010, que o acordo seria uma cilada, pois não é da alçada do Ministro da Justiça revogar um decreto presidencial.
Nessa mesma manhã de sábado o próprio representante da FUNAI foi o principal articulador e corruptor para dividir o Acampamento Indígena Revolucionário e fazer com que parte dos indígenas aceitasse essa armadilha, saísse do acampamento e fosse para hotéis em Brasília. Junto com o Diretor de Proteção ao Desenvolvimento Sustentável da FUNAI, estava o representante da Presidência da República, além de assessores do Ministério da Justiça.
Mesmo com a saída de parte do AIR para hotéis, o acampamento continuou resistindo. Por ser um local público e espaço ideal para a manifestação, a FUNAI não podia retirar à força os indígenas da Esplanada dos Ministérios. Os manifestantes indígenas, ao escolherem acampar na frente dos prédios ministeriais de Brasília, tornaram-se um “problema” para a FUNAI, pois o órgão, ao invés de atender as reivindicações dos acampados, procurava uma maneira jurídica de expulsá-los do local. Assim, houve várias tentativas de retirar os indígenas, culminando naquela que seria a mais violenta: a mega-operação policial de 10 de julho de 2010. Como não há lei que proíba cidadãos protestarem em espaço público, uma liminar obtida pelo Governo do Distrito Federal, na sexta Vara Federal da Seção judiciária do Distrito Federal, com a conivência tanto do Ministério da Justiça como da FUNAI, afirmava que os indígenas estavam utilizando o local como moradia, já que o acampamento estava completando seis meses de vida. Portanto, na manhã do dia 10 de julho, foram retirados os pertences de cerca de cinqüenta indígenas, em uma grande operação policial, que, fechou o Eixo Monumental, e terminou com a prisão arbitrária de quatro pessoas, sendo dois indígenas.
Porém, com a retirada forçada dos seus pertences e das barracas, essenciais para a proteção contra o frio (as madrugadas de Brasília em julho chegam a ser gélidas) os indígenas decidiram continuar acampando, mesmo ao relento. Para resistir ao frio de Brasília, foram disponibilizados sacos de dormir para os indígenas e a resistência continuou por ainda um mês. Os indígenas eram vigiados por duas viaturas da polícia militar durante vinte e quatro horas, em uma clara tentativa de intimidação.
Depois de retiradas as barracas de lonas e, inclusive, os banheiros químicos, a situação higiênica do acampamento ficou precária. O acampamento se tornou alvo de escárnio de humorista e matérias de jornal, por conta da dificuldade que era realizar suas necessidades fisiológicas. A intimidação policial era para que, em hipótese alguma, os indígenas retornassem a colocar barracas de lona.
Uma semana depois da mega-operação policial foi noticiado que os indígenas cobraram R$ 563.000,00 (quinhentos e sessenta e três mil reais) da Presidência da República, do Ministério da Justiça e da própria FUNAI, por “gastos com protestos”, indicando uma clara traição ao movimento indígena e afirmando que as assinaturas dos indígenas eram de “líderes”. Ainda na matéria citada, havia uma justificativa para a mega-operação policial de 10 de julho contra os indígenas, já que as tentativas de “saída espontânea” dos acampados haviam fracassado. Como Aparelho Ideológico de Estado, a mídia fazia o seu papel de encobrir, mentir e mascarar a realidade, já que desviava a atenção do quão absurdo era a retirada violenta de barracas de lona e de pertences dos indígenas e, além do mais, ignorava que os indígenas tinham o direito de protestar e se manifestar contra o Decreto 7.056/09. Que saída espontânea poderia haver, se nenhuma reivindicação havia sido atendida durante seis meses de luta e indignação?
Noticiado no próprio blog do Acampamento Indígena Revolucionário havia, sim, uma tentativa de corromper as lideranças do AIR. Em uma carta escrita e assinada pela assessoria de imprensa do acampamento, o AIR acusava como corruptores: um representante direto da Presidência da República, o Diretor de Proteção ao Desenvolvimento Sustentável da FUNAI, e membros do Ministério da Justiça. Estavam, então, envolvidos nas negociações com os indígenas os órgãos vitais para a defesa dos direitos indígenas. Assim, a própria Presidência da República, junto ao Ministério da Justiça e da FUNAI eram os principais “inimigos” dos direitos dos indígenas. Depois de um mês de resistência, sem ter tido nenhuma reivindicação atendida e com o Congresso Nacional em recesso parlamentar, os últimos indígenas se retiraram da Esplanada dos Ministérios.